A Ponce tardou mas não falhou e deu-nos uma entrevista, tântrica, de tempos lentos, doces e intimistas. As horas escorreram pelas paredes da Alfaiataria nessa conversa labiríntica de encruzilhadas como se cerejas fossem. Falou-se de tanta coisa e às tantas eu pensava para mim que desta vez ia ser lixado este meu método de simplesmente memorizar a entrevista. A Isabel sorria sempre, olhos húmidos. Que pensaria para ela? Que o incompetente do brasileiro se tinha esquecido de lhe colocar queijo na tosta de frango? Provavelmente...
A - Do início, tu vens de onde, Isabel?
I - Olha, nasco em Lisboa. E a primeira coisa que retenho é uma primeira infância muito, muito feliz. Uma família unida como depois nunca mais tive. Alargada, à antiga. Vivia com os meus pais, avó e tia e são recordações maravilhosas de aconchego. Mas depois veio o 25 de Abril. Que trouxe tudo de maravilhoso que sabemos mas que a mim me destruiu a família. Tínhamos uma casa de férias na Sobreda da Caparica. Depois da Revolução sempre que não estivéssemos lá alguém ocupava a casa. E por isso os meus pais decidiram que alguém tinha que lá viver e mandaram para lá a minha avó, a minha tia e eu. Aí tudo mudou. Eles ficaram em Lisboa. Trabalhavam muito e sobretudo depois do 25 de Abril a empresa entrou em falência e tudo se complicou mais. E por isso fiquei meio orfã a crescer sem os meus pais, lá na Sobreda, com avó e tia. Foi aí que se perderam uma série de referências. E é uma coisa que me marca até hoje e que racionalmente talvez já entendas mas emocionalmente ainda não. Porque é que os meus pais me abandonaram com aquela idade?
A - Tudo mudou...?
I - Tudo mudou. Primeiro porque me tornei uma pequena selvagem que vivia ao Deus dará. Literalmente. A Sobreda da Caparica era um pouco a selva comparada com Lisboa. Quintas, casas de férias, um ambiente meio clandestino para onde já no Estado Novo se fugia para libertinagens interditas, meio artístico, homossexualidade, etc. E uma vizinhança pobre de miúdos humildes que chumbavam, chumbavam, chumbavam e depois iam trabalhar. E a Isabel a crescer ali à balda. Hoje rio-me e recordo esse período como se fosse saído do Livro da Selva, ou o Tarzan ou assim. Uma vez o Circo chegou à terra e eu estive com eles até irem embora. Era assim, foi assim até voltar para Lisboa e ter quase que ressocializar.
A - Voltas para Lisboa quando?
I - Com 12 anos. Bom e o Deus dará de pais ausentes continuou. Só nas saídas à noite era controlada. De resto tinha os disparates todos à disposição. Ainda por cima estava no D. Diniz, um dos piores liceus de Lisboa. Era tempos diferentes, agitados. Havia violência nas escolas, droga, agitação política, era uma juventude muito politizada e era tudo meio louco. Viver nisto solta tinha tudo para dar mal. Não deu. Foi o meu anjo.
A - Como é que eras em miúda?
I - Diferente do que sou hoje. Não, não é verdade, ainda sou o que era. Mas agora é um traço mais intimista da personalidade que está menos na montra. Era introspetiva, sequiosa de ler, de cinema. E tive sorte. Conheci pessoas muito interessantes que me infliuenciaram. Professores de liceu, amigos que eram muito diferentes de mim e em que podíamos ser de várias tribos urbanas mas partilhávamos, éramos amigos e tudo funcionava muito bem. E a Isabel sempre ao Deus dará a fazer o que faz até hoje, sem família e a procurar família nos amigos e nas famílias dos amigos.
A - Que balanço fazes hoje dessa "orfandade"?
I - Primeiro que me marcou em carência. Essa incompreensão que dura até hoje. Ficou a faltar o lado bom dos valores familiares. Não sou uma tradicionalista mas aprecio algumas coisas da tradição. O conceito de família é uma dessas coisas. Por outro lado soltou-me. Para ver o mundo sem o embaraço daqueles preconceitos em que os pais acabam sempre por nos condicionar. Aceitar pessoas diferentes, não julgar, não ser preconceituosa e dar muito, muito valor aos meus amigos.
A - Os amigos são essenciais na tua vida, não são...
I - Rui Pedro, os amigos são em muitos casos a minha família e rego-os como um jardim grande e aprimorado. Há pessoas que dizem que ninguém tem mais do que dois ou três amigos verdadeiros. Disparate. Se te deres, se regares podes ter muitos e bons amigos. Mas tens que investir, claro. E eu tenho muitos e diferentes. Olha, a Ana Lourenço que nem vejo muito mas que não me perguntes porquê é das que mais falta me faz se estou em baixo. O Zeller, que enfim, o Zé é o Zé, devolveu-me Lisboa. O Filipe, a Fi. Amigos muito antigos, amigos que deixei no Brasil. O Miguel! Eu tenho muitos amigos!
A - Vamos na tua adolescência...
I - Depois casei. Novinha. O meu primeiro marido era piloto da Força Aérea. Início de romance belo.e absoluto de cartas trocadas. Por ele fui viver para o Texas. Odiei, o Texas e eu não temos nada a ver. Foram três anos horríveis. Quando regressamos a divergência de vidas agudiza-se. Ele é colocado em Beja com os F16 acabados de chegar e eu arranjo um empregaço. Grande sucesso, ordenadão, roda viva entre Lisboa e o Porto. Pelo meio o casamento acaba. É algo que lamento até hoje, ter magoado o meu primeiro marido.
A - Voltas a casar?
I - Duas vezes. (risos). Primeiro com o Pedro. O homem mais maravilhoso que conheci. Tinha sido meu professor quando estudei Direito. Eu estava a viver o meu auge. Trinta e poucos anos, carreira de sucesso, uma vida social infernal, o culto do corpo. E tinha o Pedro comigo e o Pedro era fantástico. Mas depois sucede algo. O Pedro chega ali a uma fase, a uma espécie de crise de meia idade que o tornou mais reflexivo, mais reservado. E eu infelizmente fui imatura, não soube perceber, esperar. Perdi-o. Mas estamos a falar de um gajo tão maravilhoso que ficou um melhor amigo até hoje. Mesmo no calor da separação esteve sempre lá para mim.
A - Não há duas sem três...
I - Conheço o Miguel e caso quase de seguida. É aqui que a história entronca no marco brutal de Arraial D'Ajuda. O Miguel tinha uma filha, a Carolina que é até hoje a minha filha emprestada e adorada. A mim incomodava-me o pai do Miguel viver no Brasil e não conhecer a neta. E contrariada fui eu que pressionei para irmos passar férias ao Brasil.
A - Contrariada porquê?
I - O Brasil não me dizia nada. Nada mesmo. Nem para férias. O Miguel chegou a falar-me em morarmos lá. Impensável. Até que fomos de férias. E não te sei explicar. Aterrei em Porto Seguro e odiei. Mas depois ia na balsa a atravessar o rio para o outro lado. E... ... não sei explicar. Ainda estava a ver aquela margem ao fundo e senti uma comoção inexplicável. Dizem Que Arraial D'Ajuda ou te abraça ou corre contigo. E se te abraça não te deixa ir embora. E a mim abraçou-me. Com tanta, tanta, tanta força. Aqueles dias foram mágicos. Tanto que ainda no avião de regresso a Lisboa pergunto ao Miguel. "Miguel, e se largássemos tudo e viéssemos para cá?" E foi o que fiz. Larguei tudo. Emprego, vendi bens, dei bens. Foi tudo. E fui para lá.
A - Como foi?
I - Olha o casamento acabou em meses (risos). Mas eu fiquei. Como explicar? Foi o desapego de tudo. Tinha largado tudo, estava só. Claro que não passava dificuldades, vivia de rendimentos, num condomínio privado em frente à praia. Mas com muito menos do que alguma vez tinha tido. Sem as roupas e os cremes e os saltos. Bikinis, cangas, chinelos. E as pessoas, sobretudo as pessoas. Tive um acolhimento mágico. Fiz tantos amigos. Em algumas coisas ali é tudo frugal. Vais comprar um vestido preto? Vais comprar da cor que houver e se calhar nem precisas. Vais cozinhar bacalhau? Vais cozinhar o que houver no mercado e bacalhau na volta só para o mês que vem. E eu curei-me do consumismo e do querer ter muito e essa lição não esqueci mais. Aprendi a dar-me com aquela gente. Aprendi que não precisas de gel para tomar banho e que um pobre só dorme com fome na rua se ninguém lhe abrir a porta. As portas estavam sempre abertas. Os braços estavam abertos. Aprendi a abraçar que nem louca, a dizer o quanto gosto de ti. Aprendi a gostar do meu corpo e que não é por ter celulite ou não que sou bonita ou feia.
A - É nessa altura que conheces o Zé Van Zeller?
I - Não! Eu não conheci o Zé lá! Foi mais engraçado que isso. Fui um dia com o meu sogro à pousada dele e que estava a ser explorada pelo "ex". E fiquei boquiaberta com aquilo. Achei graça porque o outro dizia que o conceito era sobretudo dele. Mas era óbvio que não. O tal Zé, o que se tinha vindo embora era obviamente o mágico que tinha criado toda aquela obra prima. Tanto que cheguei a casa e disse ao meu sogro "Olha, cá entre nós, eu gostava era de conhecer esse Zé, o que voltou para Portugal." - E conheci. Ainda troquei uns emails com ele em Arraial. E quando voltei para Lisboa encetámos a nossa maravilhosa amizade.
A- Voltaste porquê?
I - Porque lá aprendi a simplicidade em tudo menos numa coisa. Cultura. Ter acesso à cultura. Aquilo era muito pobre e às tantas percebi que tinha que sair de lá rápido ou aceitar ficar para sempre e ir-me tornando "naquilo". Naquela simplicidade.
A - Voltaste lá entretanto?
I- Não...
A - Pensas e voltar?
I - Muito... ... mas morro de medo. Foi muito intenso.
A - Pergunta cliché antes de retomarmos a atualidade dos dias de hoje em Lisboa. Uma coisa que te orgulhes muito e uma de que te arrependas?
I - Dos orgulhos tenho dificuldade em falar porque são histórias que expõem outras pessoas. Mas há uma. (hesita). Bem eu no fundo não me importo que as pessoas saibam... ... tentei-me suicidar. A beleza não foi nisso. Foi em ter ganho a luta que me fez acordar de cinco dias de coma. Fui ao outro lado e senti o abraço da morte. E tive a coragem para a guerra mais dura da minha vida que foi voltar.
A - Há o outro lado?
I - Acho que sim. Eu não sou católica. Mas sou mística. Cheia de contradições de coisas cristãs, pagãs, espirituais, santinhos, anjinhos, energias. E há. Eu senti-o. E não foi bonito. Não foi bonito para mim. Acho que a morte não gosta de meninas, gosta de almas maduras. Não me queria e eu é que me lancei para lá. E ela não me queria mas vingou-se de eu ter ido sem dever e tratou-me mal. Não me queria deixar vir. Foi um lição porque acordei apaixonada pela vida. Sou apaixonada pela vida até hoje.
A - Arrependimentos?
I - Quase nenhuns. A Isabel é doida, embebeda-se, desaparece sem dar cavaco, atira-se para uma fonte, faz loucuras. Mas não faz mal a ninguém. Magoei muito pouca gente na vida, arrependo-me de pouco na vida.
A - E chegámos ao presente. Sei que estás a trabalhar no Projeto da Miss Suzie. Conta lá.
I - Outra família que me acolheu, a Suzie e o Nico. Começou tudo com um acordo de cavalheiros. Eu ia ajudar porque estava sem trabalho e eles na medida da modéstia das possibilidades partilhariam o sucesso do projeto comigo. E eu partilho com eles a medida do menor sucesso quando as coisas não estão tão bem. E tornámos-nos uma equipa e uma família. Tem sido muito bom. Por partilhar isto com eles e pelo projeto em si. É uma coisa de muita criatividade, fantasia, para tornar as pessoas alegres. O tipo de coisa em que3 me vejo feliz e estou feliz.
A - E a seguir?
I - E a seguir é futuro e ânsia de viver e serenidade de aceitar essa minha ânsia e tentar ser feliz. Todos os dias.